Num cenário complexo da Inteligência Artificial (IA) generativa e de constante mudança, novos desafios são colocados às ciências psicológicas e ao papel dos psicólogos, uma vez que rapidamente a IA irá colonizar todos os nossos contextos, quer de vida, quer de trabalho.
Devemos questionar-nos: como me posso tornar um agente ativo na transição digital? Quais as competências que preciso de desenvolver para intervir na aplicação da IA e na investigação sob os seus impactos no comportamento? Que novas linguagens devo aprender? Como posso implementar a IA na minha prática de intervenção? O que posso delegar?
Acreditamos, pois, que competências como a clareza estratégica, o olhar sistémico, a criatividade, a imaginação e o pensamento analítico e crítico impõem-se na tomada de decisão, uma vez que é preciso saber fazer as perguntas certas, pensar, refletir, equacionar cenários, definir e propor visões socorrendo-se dos Big Data para analisar e recolher dados com precisão. Precisamos de nos reinventar, nos manter curiosos, ser observadores, adotar múltiplas perspetivas e visões, captar sinais e macrotendências para encontrar clareza na complexidade e navegarmos na ambiguidade do mundo.
Repercussão Tecnológica no Mundo Profissional
De acordo com a consultora McKinsey, a IA irá automatizar tarefas que ocupam 60% a 70% do nosso tempo e, segundo a OpenAI, 80% dos empregos irão incorporar capacidades generativas de IA. A Goldan Sachs acrescenta ainda que ferramentas como DALL-E e ChatGPT poderão automatizar o equivalente a 300 milhões de empregos.
Pelo exposto, se dúvidas existissem que estamos a viver uma revolução tecnológica, cada vez mais as evidências nos afirmam o contrário. Se num primeiro momento consideramos que as profissões braçais seriam as primeiras a sofrer alterações e as profissões criativas e as do conhecimento seriam as últimas a ser impactadas, rapidamente percebemos que as mudanças são transversais e para todas as profissões.
De acordo com o estudo “Work/Technology 2050 Scenarios and Actions” (resulta de uma avaliação internacional de 20 países sob o impacto da tecnologia) três são os possíveis cenários equacionados para 2050:
- o primeiro: “It’s Complicated – A mixed bag”, caracterizado por uma adoção irregular da tecnologia, dificuldade em lidar com as novas tecnologias e desemprego elevado por falta de implementação de estratégias de longo prazo;
- o segundo “Political/Economic Turnoil – Future Despair”, ainda mais pessimista, equaciona um mundo de turbulência pelo facto dos governos não preverem o impacto da IA geral, que na ausência de estratégia, conduzirá a um polarismo social e a uma deterioração da ordem global;
- o terceiro: “If Humans were free – the self-actualization economy”, em que os governos serão proativos e irão antecipar os impactos da IA geral, realizarão pesquisas de como implementar gradualmente sistemas de rendimento básico universal e como promover o autoemprego.
Posto isto, podemos encarar o momento em que vivemos como uma oportunidade de aumentar as nossas competências, atualizar o portfólio de saberes e ferramentas digitais (fluência digital, software & desenvolvimento, cibersegurança) e de adotar um novo mindset e foresight estratégico.
Papel dos Psicólogos na Era da IA
Na qualidade de estudiosos do comportamento, devemos recordar que a ciência psicológica se debruça sobre um conjunto de conceitos, como a inteligência, a tomada de decisão, o reforço, o condicionamento, a aprendizagem, a perceção, a personalidade, a resolução de problemas, as motivações, as emoções, entre outros, que podem gerar valor na tecnologia e na forma como são conceptualizadas, desenhadas e configuradas as soluções/ferramentas tecnológicas.
Os(as) psicólogos(as) integrados em equipas multidisciplinares podem desempenhar um papel vital no ciclo de vida do desenvolvimento tecnológico desde a conceção inicial, a experiência propriamente dita do utilizador, o estudo e a avaliação final do produto/solução, na medida em que o seu expertise é crucial para auxiliar na construção de soluções tecnológicas que sejam humanizadas, eticamente responsáveis e que atendam às complexas necessidades dos indivíduos, das organizações e da sociedade moderna.
Neste sentido, os psicólogos ao trazerem uma compreensão profunda do comportamento humano podem contribuir para o desenho das tecnologias e o seu ajuste às capacidades físicas e cognitivas dos utilizadores, identificar problemas na interação do utilizador com a tecnologia e sugerir melhorias com base na investigação científica, bem como, inovar na promoção da saúde mental e bem-estar digital.
Novos métodos de Intervenção Psicológica
Os estudos e investigações no campo da tecnologia e psicologia vão-se tornando cada vez mais recorrentes, pela crescente necessidade de abordagens mais eficazes e adaptáveis às complexidades do mundo contemporâneo. Novas formas de intervenção psicológica vão sendo testadas. Vejamos alguns exemplos:
Psicologia à distância
Se por um lado a massificação do uso da internet permitiu a utilização de novas tecnologias na intervenção psicológica, eventos como o COVID vieram proliferar o seu uso e polinizaram novas formas de intervenção, passando-se apenas do tradicional face-a-face para novas formas de intervenção psicológica à distância (web-based, e-health, m-health, e-therapy, online (psycho)therapy), com recursos a smartphones, tablets, computadores e/ou plataformas digitais.
Por outro lado, hoje, já verificamos a incorporação da tecnologia em diferentes domínios dos serviços psicológicos como a criação de novas ferramentas de diagnóstico (embodiment e bio-neurofeedback); novas plataformas de aprendizagem e ferramentas educacionais (psicoeducação e gamificação) e novas metodologias, modelos e técnicas em contextos de intervenção.
Realidade Virtual
A terapia de exposição, com recurso à realidade virtual (VRET), é uma delas, e consiste numa técnica que auxilia no tratamento de várias perturbações do foro ansioso e/ou obsessivo, stress pós-traumático e perturbações alimentares, que em combinação com a terapia cognitivo-comportamental e técnicas de relaxamento tem vindo a comprovar a sua eficácia, sustentada nos estudos científicos desenvolvidos nos últimos 20 anos. Contudo, existem outras terapias com recurso à RV como a terapia por exposição a pistas virtuais, a modificação da imagem corporal com recurso a avatars e a distração da perceção da dor e modelos terapêuticos específicos com recurso à tecnologia como a terapia comportamental cognitiva pela internet (cCBT, iCBT, eCBT).
Digital Twins
Neste novo paradigma da Indústria 4.0., cada vez mais surgem conceitos como “Digital Twins” que prometem revolucionar o campo da saúde mental, tal como já estão a fazer noutros campos da ciência, incluindo a oncologia e a cardiologia, onde foram implementados com sucesso. Este conceito permite integrar o mundo físico e mundo virtual por meio da criação de uma representação virtual completa de um equipamento ou objeto, viabilizando a construção de sistemas de informação que apoiam uma sólida tomada de decisão.
Abre-se, assim, caminho para o N-de-1 ou ciência individual que permite a hiper personalização e incorporar dados biológicos (genómicos), comportamentais, psicológicos e digitais de saúde, de modo a que os próprios utilizadores possam começar a avaliar as relações dos seus próprios padrões de resposta ao tratamento e às contingências que os impactam.
Desafios da Inteligência Artificial
Por tudo isto, enquanto cidadãos globais e profissionais das ciências psicológicas, precisamos de aprofundar o nosso conhecimento sobre as tecnologias envolvidas, internet das coisas (IoT), a inteligência artificial (AI), o machine learning, redes neurais e deep learning, para perceber melhor as ferramentas que se encontram à nossa disposição e como nos devemos posicionar, trazer novos inputs e contribuir para o desenvolvimento de uma IA centrada no Humano.
- Por conseguinte, devemos também estar conscientes que o
- crescente uso da IA coloca novos desafios como:
- discriminação, acentuando vieses cognitivos e preconceitos (decorrente da forma comos são construídos os algoritmos);
- concentração de poder (o custo limita a acessibilidade);
- riscos de desinformação;
- manipulação dos dados;
- falta de transparência, de privacidade, de segurança (possibilidade de disponibilização de dados a terceiros fora da organização);
- levanta questões éticas e de possível violação das regras de compliance (como no caso do Shadow AI).
Todas estas questões de cibersegurança fazem-nos pensar se realmente é confiável realizar consultas de psicologia pela internet.
Talvez seja a altura certa para nos questionarmos e realizarmos algumas perguntas prospetivas como: o que está a acontecer com a minha profissão? O que é que eu acho que vai acontecer com a minha profissão? E se algo acontecer em vez disso? O que eu quero que aconteça?
Assim sendo, quanto mais conscientes, individual e coletivamente, estivermos destas transformações e mais equipados para lidar com elas (valores, saberes e competências) mais poderemos ser agentes (pro)ativos de mudanças e co-construtores de novos futuros.
Tal como refere John Naisbitt “As inovações mais incríveis do século 21 não serão pela tecnologia, mas pela expansão do conceito do que é humano” pelo que devemos criar sistemas que privilegiem a interseção entre a inteligência humana coletiva e a artificial, que amplifiquem e aumentem as capacidades humanas, operando de forma transparente, eticamente responsável e equitativa.